sexta-feira, 10 de julho de 2009

Brasil abaixo de zero

O inverno rigoroso de Urubici é reconheci­do como o mais gelado do Brasil desde 1987, quando a Aeronáutica montou uma base de controle de voo no alto do Morro da Igreja, que fica dentro do município, e passou a monitorar a temperatura. Com 1828 metros de altitude, o morro é o ponto culminante do sul do Brasil e dá de frente para uma intrigante escultura natural, a Pedra Furada, cujo vão tem a forma perfeita de um relâmpago. Na madrugada de 29 de junho de 1996, os cadetes de plantão na entrada da base viram o termômetro alcançar 17,8 graus negativos, um frio digno das estepes siberianas. É o recorde brasileiro ate hoje.
Com a ajuda da base militar, Urubici ganhou o título de município mais frio do país, mas na prática quem conti­nua com essa fama é a vizinha e mais famosa São Joa­quim. Sempre que a meteorologia prevê a queda de neve na Serra Catarinense é para São Joaquim que os turistas correm, muitos sem se dar ao trabalho de reservar hotel. Eles chegam de repente e vão para as ruas se encharcar de neve, como crianças. Às vezes os 900 leitos da cidade (600 em hotéis e 300 em casas de família cadastradas) são poucos para tantos fo­rasteiros, e o jeito é deixá-los dormir no carro mesmo, se possível com uma garrafa de conhaque por perto.
O deslumbramento com a neve — e o improviso ao lidar com ela — é natural num país como o nosso, muito mais conhecido pelas praias e pelos verões tórridos. O Brasil tropical ainda se espanta com cada notícia de nevasca na Serra Catarinense, como se isso fosse um evento incomum, quando se trata exatamente do contrário. Nessa região, o normal é que a neve caia todo ano, por seis dias em média, como mostra o histórico das variações climáticas dos últimos cinqiienta anos. Nesse período todo, só em 1982 não nevou nas terras altas de Santa Catarina— uma zebra tão grande quanto à derrota do Bra­sil para a Itália na Copa daquele mesmo ano. Que lugar tão frio é esse que o resto do país ainda desconhece?

Cânions, abismos e araucárias
A Serra Catarinense é uma região verde e muito bonita, com altitudes entre 900
e 1800 metros, onde ventos quentes e úmidos formados no litoral costumam se chocar com massas de ar gelado vindas da Argentina no inverno. Quando o contraste é muito grande, o vapor d'água vira cristal de neve sem passar pela forma líquida – e cai em flocos suaves, tingindo tudo de branco. É um território bem semelhante ao dos campos de Cima da Serra, do Rio Grande do Sul, com muitos cânions, abismos e rios cristalinos correndo sobre leitos de pedras – os dois, aliás, formam uma mesmo unidade geográfica, conhecida como Planalto da Neve. No campeonato brasileiro de temperaturas negativas, porém, é clara a vantagem da porção montanhosa catarinense sobre a gaúcha.
Durante quatro décadas — do início dos anos 1940 ao 1970 o Planalto da Neve foi também uma das maiores fontes de abastecimento de madeira de lei do Brasil, a madeira rígida e adornada com graciosos desenhos geométricos da araucária. Até que um dia esse pinheiro típico do sul foi praticamente extinto (resta apenas 7% da floresta original) e as poucas produtivas fazendas de gado se tornaram a principal atividade econômica da região. As araucárias que sobraram hoje são protegidas por lei e destacam-se na paisagem como belos enfeites naturais. Só se admite retirar delas agora o pinhão que os locais gostam de comer misturado a carnes, farinha ou simplesmente tostado no fogo de chão.
A Serra Catarinense, que chegou a ter 700 serrarias no auge da derrubada dos pinheirais, passou assim da condição de rincão semi-selvagem direto para o marasmo, o que não ajudou em nada sua descoberta pela maioria dos brasileiros. Quem chega apressado a São Joaquim, que­rendo apenas ver neve, também pode ter uma impressão errada da região, pois esta é uma cidade sem maiores atrativos, que só fica fotogênica quando coberta de flocos brancos e gelados. O pedaço onde o Brasil é mais frio tem muitos outros segredos a dividir com os visitantes, mas para isso exige um pouco mais de tempo.
É uma pena voltar para casa sem provar as melhores receitas regionais de pinhão e truta, por exemplo. Ou sem fazer uma cavalgada ate a borda de um cânion onde não se chega de carro. Expedições a pé também são fundamentais para um contato mais direto com a fauna e a flora regionais – há xaxins de vários metros de altura que só se encontram por aqui.
É indispensável, ainda, percorrer de carro, calmamente, as estonteantes
curvas das serra do rio do rastro e do Corvo Branco, pa­rando nos belvederes para tirar fotos. Nem pode faltar paciência para subir mais de uma vez o Morro da Igre­ja, no caso de encontrar a Pedra Furada escondida pela neblina (o céu costuma ser mais limpo de manhã, mas é a tarde que o Sol ilumina em cheio a rocha recortada).
Difícil também é acreditar que estamos no Brasil quando encontramos placas de sinalização alertando para a presença de gelo na pista. Você não as verá em nenhum outro lugar do país. Nem placas informando que a temperatura mínima pode chegar a 12 gruas negativos, como ostenta, orgulhosamente, o Hotel-Fazenda do Barreiro, em Lages, a maior cidade da Serra Catarinense. Mais surpreendente ainda é topar com a indicação de maior atrativo da minúscula Urupema:” Cachoeira que congela”. Sim, a cachoeira do Morro das Torres, que despenca de 1710 metros de altura, costuma congelar nos invernos mais severos – no de 2000, formou uma crosta de gelo no dia 15 de julho que só foi começar a derreter dez dias depois.

Uma cadeira sobre o lago
Há hospedarias rurais que investem em públicos mais específicos, como os amantes das caminhas e os casais em busca de refúgios românticos.
A melhor de todas, sem dúvida, é o Rio do Rastro Eco Resort, que fica bem ao lado dessa desconcertante subida em ziguezague, no município de Bom Jardim da Serra. O Hotel tem dezenove chalés ultra-confortáveis, todos com banheira de hidromassagem, calefação e linda vista para o lago e as montanhas da propriedade.
Nasceu como hotel-fazenda, mas foi completamente re-modelado dois anos atrás e acabada de revestir seu encanamento com dupla proteção térmica contra o frio abaixo de zero. No inverno de 2000, quando a temperatura chegou a 14 graus negativos na serra, a caixa-d’água do Rio do Rastro congelou e os canos estouraram. Os hóspedes ficaram sem tomar banho, mas não reclamaram. Queriam mais era aproveitar para tirar fotos. A foto de uma cadeira atirada sobre o lago congelado do Eco Resort, aliás, foi parar na primeira página de um dos maiores jornais brasileiros naquele ano.
Enquanto Bom Jardim da Serra, Urubici e Lages vão pouco a pouco se equipando para receber mais turistas, São Joaquim desfruta, inabalável, sua fama – imerecida ou não – de cidade mais fria do Brasil. “Aqui estamos mais preocupados com as plantações de maça. Até os donos de hotel em São Joaquim tem seus pomares”. Confessa o secretário Anderson Outuki. A maçã, introduzida no município nos anos 1970, hoje responde por 80% da comida de São Joaquim , que no entanto tem outros produtos rurais mais interessantes para se levar para casa. Entre eles, os grossos casacos de lã feitos à mão, o poderoso mel de bracatinga (que as abelhas tiram da resina, e não da flor dessa árvore) e o vinho. Pois é, a Serra Catarinense já produz bom vinho, embora o resto do Brasil também não sabia – ainda.

Um Chardonnay de respeito
Assim como a maçã, que chegou a São Joaquim porque um certo pesquisador japonês considerou as condições climáticas perfeitas, o vinho está seguindo o mesmo caminho. Apenas três variedades da bebida foram lançadas no mercado, em pequenos lotes: um rose, um tinto com as uvas Cabernet sauvignon, Merlot e Syrah, e um branco Chardonnay.
Além de degustar essa mais recente surpresa da Serra Catarinense, a visita à vinícola vale a pena pelas belas instalações, que guardam lugar até para uma galeria de arte.
Os ares glaciais dessa inusitada região brasileira, enfim, estão demonstrando que servem para mais coisas do que produzir neve – o que só reforça o convite para você visitá-la. A quem lhe perguntava por que escolher São Joaquim para plantar maçãs, o pesquisador Kenji Ushirosawa costumava responder: “ Pedra a gente remove; montanha a gente plaina, mas clima, não conseguimos mudar”. Bom, pode ser que o clima da Terra até esteja mudando um pouco. Mas o da Serra Catarinense continua prenunciando nevasca. Quem sabe, agora mesmo.

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